Cúria Romana é apontada como palco de intrigas que levaram Papa a abdicar


ROMA — O Papa Bento XVI, ao anunciar sua renúncia, provocou um cataclismo no Vaticano. E agora? Seus detratores viram o gesto como a reação de um homem que não teve punho para governar uma Igreja tomada por disputas, carreirismo e escândalos. Mas outros viram um gesto revolucionário. Consciente de seu isolamento, e sentindo o peso da idade, Bento XVI deu o passo impensável para provocar justamente o que buscava: um choque de mudanças na Igreja e na Cúria Romana — o conjunto de órgãos e pessoas que o auxiliam e que, no fundo, governam o Vaticano e a Igreja. Vaticanistas têm apontado o centro de poder da Santa Sé como o palco onde se desenrolou o drama que levou a um desfecho há 600 anos não visto: a abdicação do Pontífice.

Salvatore Izzo, especialista em Vaticano da Agência Itália, é um dos que endossam esta tese:
— É certo que um Papa não governa sozinho. E as divisões na Cúria são evidentes, em parte porque ela se tornou ingovernável.
Izzo vê três motivos que, juntos, levaram à renúncia do Papa. Aos 86 anos, Bento XVI alegou que não tem mais força física, de alma e de mente.

— Essa falta de força de alma, numa tradução objetiva, significa que ele não se sentiu suficientemente apoiado (na Cúria) — diz Izzo.
Salvatore Mazza, do jornal católico “Avvenire”, e que conhece Joseph Ratzinger desde 1982, assegura que pesou muito o problema físico.

— O Papa voltou morto da viagem ao México e a Cuba e estava com muito medo da viagem ao Brasil (para a Jornada Mundial da Juventude, em julho, no Rio) — avalia Mazza, que questiona a ideia de que Bento XVI estava isolado após a descoberta de escândalos. — Ele sabia o que tinha que fazer e fez. E no momento da decisão final, um Papa está sempre só.

Rebelião contra o braço direito do Papa

Mazza lembra que, com 25 anos de Cúria, Bento XVI conhecia as disputas e os problemas do Vaticano. O Pontífice encontrou resistências, sustenta o vaticanista, mas um homem que pregava a reforma da Cúria não tinha medo:
— Não vejo um Papa que se demitiu porque foi vencido.

Para Izzo, outro fator pesou forte. Num Vaticano contaminado pelo carreirismo, o Papa enfrentou uma revolta de cardeais contra o homem que escolheu para cuidar do dia a dia da Cúria: Tarcisio Bertone, secretário de Estado e braço direito do Papa quando ele chefiava a Congregação para a Doutrina da Fé. Bertone “é um salesiano que, quando quer fazer algo, vai adiante”, explicou Izzo. Esse jeito de resolver e simplificar as coisas provavelmente criou incidentes e frustrações, por exemplo, em nomeações de bispos ou cardeais.

— Houve revolta contra Bertone, por questões de poder. Durante meses, muitos cardeais foram ao Papa pedir sua substituição. E isso chateou muito o Papa, que confia em Bertone e não via razões objetivas (para substituí-lo).

Nos oito anos de Papado, portanto, dois homens se digladiaram no centro da Cúria: Bertone e Angelo Sodano, seu antecessor na secretaria de Estado. Decano do Colégio dos Cardeais, Sodano recebia as queixas dos cardeais e as levava ao Papa. Com a renúncia de Bento XVI, espera-se uma intensificada batalha de influência: será Sodano quem vai ajudar os cardeais a se prepararem para a votação.

Izzo também vê uma intriga de “dois ou três cardeais, talvez mais” no escândalo VatiLeaks — o roubo de documentos secretos do Vaticano pelo mordomo do Papa, Paolo Gabriele. O grande golpe por trás disso, segundo ele, não era contra o Papa, mas sim contra Bertone.

— Gabriele estava sendo usado por cardeais, e o Papa teria tido um grande desprazer com isso. Para um cardeal, é difícil estar contra um Papa, até por motivos psicológicos. A hostilidade era contra Bertone. Mas o Papa recebeu isso como uma hostilidade contra ele — diz Izzo.

Anunciada a renúncia do Papa, uma espécie de ajuste de contas teria começado. De acordo com o jornal “La Stampa”, o primeiro sinal é a saída de Marco Simeon, responsável pela Rai Vaticano. Protegido de Bertone, Simeon era considerado uma pessoa intocável até a semana passada.
Mas foi a limpeza conduzida pelo Papa após casos de pedofilia que, para Izzo, foi um fator central.

— O Papa foi odiado por tantos… Pelos culpados, mas também pelos que são da velha escola do laxismo (que defende pouco rigor nas punições).
A crise na arquidiocese de Los Angeles por conta de escândalos de pedofilia foi um dos estopins. O Papa nomeou para a arquidiocese José Gómez, que barrou seu antecessor, o cardeal Roger Mahony, de ações públicas, após descobrir que ele escondeu 129 casos de abuso envolvendo padres. Gómez fez a limpeza com o apoio de Bento XVI.

— Isso causou insatisfação entre vários cardeais, porque o direito canônico não prevê esta possibilidade. Um cardeal não pode ser encostado assim, só pelo Papa. É uma das razões pelas quais o Papa acabou isolado.

Mazza, do “Avvenire”, diz que a gestão interna dos escândalos da pedofilia revelou em Bento XVI um Papa revolucionário:
— O Papa não pode exonerar um bispo que acobertou pedófilos. O código só considera que isso pode ser feito por motivo grave contra a confissão da fé. A pedofilia é um ato gravíssimo, mas não é contra o ato da fé. O Papa introduziu mecanismos que levam um bispo a pedir demissão.

Outro vaticanista, Marco Politi, tem uma visão radicalmente oposta. Num artigo de 2012, intitulado “Ratzinger rumo ao crepúsculo”, ele concluiu que o pontificado de Bento XVI vai ser marcado pela estagnação. O Papa falou em reforma da Igreja, “mas não deu respostas concretas”. Está melhor no papel de teólogo e pensador, mas não de um Papa: o peso da Santa Sé na cena mundial “se calou drasticamente”, escreveu Politi.

(O Globo)



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