Caminhada da seca reúne seis mil fiéis em Senador Pompeu


Mais uma vez o martírio de milhares de retirantes no flagelo da seca de 1932, no Sertão de Senador Pompeu, foi relembrado na manhã de ontem. Cerca de seis mil fiéis partiram da Igreja Matriz de Nossa Senhora das Dores, no Centro desta cidade, com destino ao campo santo da barragem do Açude Patu. Ainda era madrugada quando o padre Roberto Costa anunciou o início da 28ª Caminhada da Seca.

A maioria, vestidos de branco, pagava promessas e todos exaltavam as santas almas do povo, como ficaram conhecidas as vítimas da fome e da cólera, enterradas em covas coletivas ao lado da barragem, transformadas em milagreiras através do imaginário popular.

Como nos anos anteriores, homens se revezavam carregando na cabeça a maquete de uma cisterna de placa. Além do ato religioso, o reservatório domiciliar se transformou no símbolo da redenção do infortúnio sertanejo, a seca. Ao lado do agricultor, o padre Roberto Costa, responsável pela mobilização pastoral, guiava o rebanho humano pela sinuosa estrada do Santuário da Seca. Missionárias empunhavam faixas exaltando a caminhada e a luta do povo de Deus pela vida e cidadania. Logo atrás a multidão gritava em coro: "As almas do povo são o santo do povo!".

Enquanto o cortejo invadia a estrada sinuosa com destino ao santuário da barragem, uma das últimas sobreviventes do campo de concentração, dona Luiza Pereira Lô, aguardava diante do cemitério das Almas do Povo o início da celebração religiosa, realizada, tradicionalmente, naquele local. Apesar dos 93 anos, lúcida, não se afobava em relatar o seu testemunho sobre o sofrimento de quem não sobreviveu no curral da fome, como o lugar também ficou conhecido. "Ali, muita gente era mantida para não invadir e nem saquear as cidades", apontava ela para a represa logo abaixo. O restante do seu testemunho ela registrou para a multidão no início do culto religioso.

Acompanhado do bispo diocesano de Iguatu, dom João Costa, o pároco de Senador Pompeu convidou a sobrevivente para subir na plataforma onde a missa foi celebrada. Comovidos, muitos começaram a chorar. A costureira Maria do Socorro de Oliveira não se conteve ao ouvir o relato compassado de Dona Luiza, lembrando o sofrimento de sua família e de sua irmã nascida ali. Eles haviam caminhado mais de sete léguas, fugindo de miséria pior no Sertão dos Inhamuns. Embora pequena, entendia e sofria com eles. O pai se enterrou ali, a irmã também.

Comoção
O auxiliar de enfermagem José Nascimento, também se comoveu com as palavras da sobrevivente. "Esse foi um momento muito doloroso para centenas de famílias. Tamanha maldade é injustificável. Por tanta penúria, quem perdeu a vida de forma tão trágica só poderia se transformar em santo mesmo". Para ele, relembrar esses momentos e reforçar a certeza de que um episódio tão trágico nunca mais volte a acontecer em lugar nenhum do Mundo.

Afetado por uma grave doença quando tinha 17 anos, o agricultor Francisco de Assis Fernandes depositou suas esperanças nas almas da barragem. Ele diz ter sido milagrosamente curado após fazer uma promessa. Desde então percorre toda segunda-feira até o santuário da seca, onde acende mais de uma dezena de velas. Emocionado, diz ter sentido na própria pele a dor de quem foi tratado em condições sub-humanas ali vizinho. "Mulheres e crianças foram mortos como bichos, mesmo assim nos amparam. Somente quem é santo tem esse dom", completa.

De acordo com o padre Roberto Costa, o próprio povo depositou suas esperanças no santo coletivo. Com o passar dos anos, os milagres estão surgindo e a fé se fortalecendo. Mas além da religiosidade é preciso refletir sobre o vergonhoso episódio do campo de concentração. Relembrá-lo a cada caminhada é alertar os governantes para que essa passagem nunca mais se repita. Este ano a mobilização em torno do ato religioso iniciado em 1982 pelo vigário Albino Donatti, voltou a se fortalecer, e com ele, além da fé, a consciência e o desenvolvimento de políticas públicas para convívio com a seca e com o semiárido.

Fonte: DN

Luiz Vasconcelos

O redator do blog tem formação acadêmica pela Universidade Estadual do Ceará na área de Pedagogia, no entanto, tem grande predileção pelo jornalismo.

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